Somos todos idiotas
(Texto escrito para estudantes e profissionais da Psicologia,
mas se quiser pode ser para você também.)
As pessoas
inventaram essa de que tudo “Freud explica” para explicarem tudo que querem
através de Freud. Também, o cara era mesmo o “Sid de Ouro”; ele tinha um brilho
de quem ilumina verdades. Freud empenhou-se tanto no “conhece a ti mesmo” que sua
atenção fluía conscientemente ao entrar em sintonia e ao destoar do seu Ego, e nessa
autoconsciência acabou formulando os conceitos de Egossintônico e Egodistônico.
Sintônico se refere a quando os sentimentos e comportamentos estão em harmonia
com as necessidades do Ego. Um narcisista que não reconhece suas falhas é
difícil de tratar, pois tem uma autoimagem extremamente positiva. Essa
autoimagem o satisfaz, ou seja, está em sintônia com seu Ego. Já distônico é
quando a autoimagem está em desacordo, por exemplo, com o ideal do Ego de uma
pessoa; Um transtorno depressivo gera altos sentimentos de inadequação e não clareza
de raciocínio que induzem um sujeito a destoar da aceitação de si, mesmo quando
não há uma variante de anormalidade ou doença consigo, pulsando na pessoa uma autoimagem
que não tem sintonia com o Ego. Tanto nos esclareceu Freud que suas colocações inspiraram
o CID (Classificação Internacional de Doenças), o último lançado o nº 10, no subitem
F66.1 classifica a “orientação sexual egodistônica”. E fez-se assim mais um
protocolo; a força de lei.
Dizem os
entendidos do Direito que os legisladores deixam, às vezes, termos genéricos
para ampliar propositalmente as interpretações legais. E aí então, os juristas
precisam buscar o “Espírito da Lei”, tanto para ou acusar ou defender como para
sentenciar. No caso do assunto sexualidade, a humanidade muito bem resolvida que
é, levanta questões interessantíssimas: “Como reverter um homossexual em hétero
antes que ele se mate por sofrer por não ser hétero?” ou “Como resolver o
sofrimento Egodistônico do gay, da lésbica ou do bi que se acreditam pecando,
pois seu Ego ideal é fortemente subjetivado por paradigmas religiosos?” e essa:
“Se terapias como Psicodrama e EMDR trazem resultados efetivos na recondução da
sexualidade em torno de 30%, por que não usá-las se até o tratamento do câncer
mata tendo em alguns casos eficácia percentual menor e não deixamos de tratar o
câncer?” Surpreendente, se a base do raciocínio não fosse a defesa distorcida da
imagem comum de “dos males o menor”. Podemos nos perguntar se será que o
espírito desses questionamentos é tentar dar a ideia de tratamento a base de
Redução de Danos? Mas o dano não é uma abordagem sobre um vício, uma doença? Vejamos
em outras perspectivas: “Se o câncer por si mesmo matará de qualquer maneira se
não tratado, mas a orientação sexual por si mesma não, sendo o câncer uma
ferida que se enraíza no organismo humano e a denominada homossexualidade
apenas uma característica da constituição afetiva de um sujeito, em que sentido
é coerente equiparar esse dois elementos?” ou “Sendo a depressão um transtorno
grave de humor e a afetividade sexual uma formação do ser, como focar o
tratamento da depressão em redirecionar a constituição do sujeito se esta por
si mesma não determina nem interfere no humor do ser em questão?” também “Se
Egodistônico não significa que o ser está em patologia pelo objeto inaceitável
pelo Ego, antes sim, em sofrimento pela relação do Ego com este, por que e para
que direcionar o tratamento dessa relação sofrida na reversão do objeto? Isso sim,
por si só não reafirma o objeto que produz o sofrimento e o realimenta?”
Há no campo da sociologia uma igualmente apropriada e
interessante questão do pensador Montesquieu:
“Por que em tal país e em um dado momento, sobre um determinado assunto, uma
lei e não outra?” Seria por que umas pessoas fazem-se umas perguntas e outras,
outras?
As pessoas que defendem a terapia de reversão de orientação
sexual argumentam abertamente a ideia de que o CID F66.1 significa que uma
pessoa está doente mentalmente. E, que o profissional da psicologia deve
limitar-se a executar terapia para cumprir um tratamento sob o diagnóstico de uma
doença que foi atestada no âmbito da Psiquiatria. Pois bem, Disfônia é
sofrimento e sofrimento é sintoma e não doença. A relação da constituição
afetivo sexual do sujeito com o Ego é que pode ou não causar disfônia em forma
de sofrimento. Esta sofrendo não “por causa da”, “mas com a”. A relação com
esta é que é problemática e não ela por si mesma. Portanto, as questões que o
Ego tem com o objeto é que são causadoras da disfônia, estas é que precisam ser
tratadas. Eis a causa do sofrimento. O psiquiatra que atesta este CID, está
atestando o sofrimento do Ego de uma pessoa em relação a afetividade sexual e
não uma doença por ter esta ou aquela afetividade. Por isso esse CID não
fundamenta sexualidade como doença e não fundamenta que se deve revertê-la, antes
sim esclarece que o Ego que não se sente em paz com sua orientação sexual precisa
rever os mecanismos dessa relação e refletir e conscientizar sobre o real peso
e significado de cada elemento, sejam os próprios vínculos entre a orientação e
o Ego como a orientação afetiva em si. Portanto, não cabe orientarmos ou
reorientarmos a sexualidade em nenhum sentido, mas sim libertarmos a
sexualidade justamente de qualquer orientação, ou o do Ego e seus mecanismos ou
de terceiros. O tratamento para esse sofrimento, se é que ele assim continuará
protocolado no CID 11, precisa tratar-se de relacionar a psique nessa disparidade
com sua sexualidade e jamais de direcionar a esta ou aquela sexualidade, pois é
justamente sua inadequação, sua dificuldade de autonomia em autodirecionar-se
nesse sentido que lhe causa sofrimento. Trabalhemos para desenvolver a imagem
do Ego com sua afetividade seja qual for enquanto apoiamos que a subjetividade
do sujeito flua e constitua-se em seu próprio ser como ele assim a descobrir.
Sintonicamente; assim como também nos esclareceu Rogers sobre a necessidade de
congruência, para não perseguirmos a um Self Ideal que pode ser inatingível e
promovedor de frustração eterna. Enquanto o nosso Self Real agoniza pela nossa
falta de sintonia conosco mesmo.
Para entrarmos em sintonia quantas vibrações precisamos
experimentar? Quanta luta pode haver num apaziguamento? Precisamos tornarmo-nos
egodistônicos com a homofobia. Essa sintonia que alguns Egos têm de sensação de
propriedade exclusiva da aceitação só de héteros num mérito de naturalidade
baseada em linguagem de “maioria como norma” é que é doentia. Eu diria até que poderia
ser uma espécie de acusação de um narcisismo sexual: “Olha só minha sexualidade
é normal então é naturalmente superior a sua.” “Sua sexualidade é uma variante
na média, seu medíocre.” Responde o orgulho do outro na defensiva. E seguimos armados,
disparando com a linguagem para atingir a verdade do outro.
Nosso momento é agravado por uma brecha histórica herdada da
patologização dos afetos, baseada na construção da linguagem do termo
homossexualidade. Em 1952, a Associação Americana de Psiquiatria publicou em
seu primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais que a homossexualidade
era uma desordem. Pudera. Até Freud assim a explicou:
“o
complexo de Édipo/castração passaria a ser problematizado em função da
diferença genital entre os sexos, onde a heterossexualidade assume o lugar de
referência já que suposta produtora de alteridade, cabendo a homossexualidade o
critério da fixação e do narcisismo, como lembrado por em “As Múltiplas Faces
da Homossexualidade na obra freudiana”(Vieira, 2009).
Mas,
já em 1973 a Associação Americana de Psiquiatria
retirou a opção sexual da lista de transtornos mentais, até oficializar na
revisão de 1990. Afinal, inclusive o Freud revisou seus conceitos como
demonstrou na carta resposta escrita em 1935 a uma mãe apreensiva que carecia
muito de esclarecimentos quando pediu-lhe tratamento para reconduzir a sexualidade
do filho:
"Homossexualidade
certamente não é uma vantagem, mas não há motivos para se envergonhar, não há
vícios, não há degradação; isso não pode ser classificado como uma doença;
consideramos como uma variação da função sexual, produzida por uma certa
contenção do desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis
da antiguidade e também dos tempos modernos foram homossexuais, diversos homens
grandiosos."
Freud
fez referencia a Platão, Michalangelo e Leonardo da Vinci, pessoas que buscaram
transcender suas próprias ideias e deixar alguma contribuição à construção de
espaço para adentrar a luz do saber no seu próprio tempo. Aliás, o desinteresse
nessa contribuição pública no sentido grego tem um nome: idiotas, da origem “idios”
que significa “pessoal, privado”. Aquele que vive para se dedicar apenas aos
assuntos particulares sem contribuição ao serviço público, sem participar dos
assuntos que a toda sociedade interessa.
Processando
esse conceito se tivéssemos ao menos noção de tudo que não contribuímos para o
bem público por certo deixaríamos de ser idiotas em várias coisas e passaríamos
a colaborar. Mas, podemos firmar a boa vontade e buscar constantemente onde
sermos menos idiotas. Haverá sempre áreas em que não participaremos, por isso
até o maior gênio, neste sentido também é um idiota. Somos todos idiotas. No
entanto, para aquilo que tivermos real interesse poderemos nos ‘desidiotisar’.
Ao
se interessar pelo assunto LGBT, vem junto toda uma percepção de uma história
de causa, causa como luta. Luta por uma construção de sentimento de normalidade
à variação da complexidade da afetividade e da sexualidade humanas. Quando
afirmamos que somos todos diferentes, queremos justamente construir a diferença
como igualdade entre nós e assim apresentarmo-nos a todos como normais, ou
seja, na norma. Perguntamo-nos: vale a pena reconstruir o conceito de
normalidade para agregar a todos ao invés de não só a maioria em uma norma? Até
que ponto isso é apenas mudar uma palavra se o importante é afetar o sentimento
de que independente da quantidade de pessoas num grupo (que terá suas
diferenças subgrupais) é da natureza da nossa espécie que psicobiofisiocialmente
os indivíduos se agrupem em quantidades discrepantes, mas em constituições
parecidas uns aos outros nestas, e isso é absurdamente natural? É natural ser
maioria. É natural ser minoria. É humano. É um fato humano.
Dentro
da história da normalidade da vida social, houve uma época e lugar na idade
média onde os casamentos entre pessoas do mesmo sexo era permitido. A Adelfopoiesis, onde as pessoas poderiam
partilhar o lar, a herança e serem enterradas no mesmo túmulo. Dizem que só não
podiam a pratica do sexo. Era um
arranjo para permitir, mas encobrir a parte da sexualidade humana que não gera
procriação. Levando em conta que boa parte da história da humanidade não
vivenciou o casamento para realização afetiva e ou procriativa, mas para
organização de partilha de bens, fica compreensível.
O
que podemos compreender de no contexto histórico atual de separação do estado
versus religião e de caminhada no entendimento da subjetividade humana que
precisemos assegurar como um direito básico a liberdade de ser diverso no afeto
e na sexualidade? Será que cabemos num conceito religioso apropriado a Deus de
fala que Ele, O senhor, determina que o afeto que flui em nós humanos não é meritório
da mesma consideração? Qual é a diferença do afeto? O sentimento denominado
amor construído subjetivamente no afeto homo não é o mesmo no hétero, no bi,
trans, queer? Qual a diferença do companheirismo? Quando ambos se casam e ou
constituem família, o cuidado de um casal é mais cuidado que o cuidado do outro
casal? Qual a diferença do prazer? O beijo na boca, o toque na mão, as
carícias, são receptadas por células neurais sensitivas e mecânicas diferentes?
Não. Nada disso é humanamente diferente. Então, onde há diferença?
Evidentemente na capacidade reprodutiva. E reproduzir organicamente outro ser
não implica necessariamente ser capaz de criá-lo, educá-lo, amá-lo. Assim como
não reproduzir obviamente não deixa ninguém mais apto. Em suma, não é marcador
para capacidade parental. Como citado em “Famílias Constituídas por Lésbicas,
Gays e Bissexuais: Revisão Sistemática da Literatura” (Lirva & Morais,
2016): “aspectos como a pobreza, depressão parental, divórcio, abuso de
substancias parental, violência doméstica são indicadores de fatores de risco
para o desenvolvimento sociopsicológico infantil e adulto, mas a orientação
sexual dos pais não está entre eles”.
Entre
nós humanos acontece o que na maioria dos cios animais não ocorre, a liberdade
de escolha da prática sexual. A vida, a natureza, a biologia ou Deus, tenha a
linguagem que tiver, dotou boa parte dos animais de um cio com período
determinado, onde o anseio pelo ato sexual é exclusivo para o período da
reprodução. Mas a nós humanos, não. Nosso organismo não reproduz desejo
exclusivamente como cio reprodutivo. O que a vida fez de nós, não é o que ela fez
dos animais. Reduzir tudo que somos capazes de pensar, sentir, constituir,
subjetivar em cima de um desejo que em nosso organismo/pisque é ofertado
vivenciar em toda nossa vida é nos desumanizar. É tentativa de nos controlar;
mas para quem esse controle resolve alguma coisa? Seria àqueles que se
angustiam com a nossa liberdade? Podemos dizer que somos livres para expressar
e vivenciar nosso desejo sexual que é tão direcionador da nossa vida afetiva? Como
dizia Erich Fromm: “o homem é o único animal cuja existência é um problema que
ele tem que resolver.” E ajudando a resolver nossa angústia o próprio Fromm nos
coloca que: “O amor é a única resposta sã e satisfatória ao problema da
existência humana.” E quando o próprio amor vira um problema o indivíduo sem
apoio tende a não satisfazer sua existência.
Quando
um LGBT por ser LGBT é violentado, discriminado, ofendido é a nossa capacidade
humana de afeto que é. É à nossa diversidade humana que agridem. O amor é um assunto
humano, um Ser por si só da humanidade. Amor não é precedente de um dever
procriativo. Ou a psique estaria ao organismo subjugada. O fato é que amar é o exercício
do direito de ser humano.
Amor
não é criação da psicologia, mas a subjetividade de certa feita é. E sobre a
subjetividade do amor, se a Psicóloga não a for buscar conhecer, defender,
ampliar, quem vai fazê-lo?
A
grande maioria de nós alardeia levantar a bandeira do amor, mas quem de nós
efetivamente faz alarde quando o amor é posto a prova? Nós podemos nos
desinteressar por inúmeros assuntos, sermos idiotas no sentido grego do
desinteresse público para diversos temas, até porque é humanamente impossível
conhecer e agir em tudo. Mas, no sofrimento que é sufocar o afeto do LGBT, o
que significa deixarmos de buscar e agir? O homem criou o amor com a
humanidade, mas nenhum homem ou grupo sozinhos pode dizer à humanidade o que é
o amor. Pois, a todos afeta de modo diverso. Nós psicólogas, como eternas
aprendizes da diversidade humana, temos uma voz de poder nessa construção.
Podemos entender a subjetividade dos sujeitos, podemos integrar à nossa própria
e podemos dar nosso espaço a todas as vozes. Ou nos calaremos ante a
diversidade? Muitos outros sons se calarão no nosso silêncio. Temos muitas
coisas as quais precisamos optar e deixar a beira do caminho das escolhas, mas
justo nisso, para o amor daremos as costas?
Tivemos
um jornalista brasileiro que disse: “Apenas os idiotas não se contradizem”, se
não me falha a memória foi Paulo Francis e, sua frase nos provoca uma
entrelinha Gestáltica de olhar frente versus
fundo em duas questões que se afiguram: “Você enxerga a capacidade de mudança
de opinião como inteligência?” versus “Você vê como inteligência a capacidade
de contribuir na mudança de concepção dos outros mesmo quando não se é capaz de
nem com clareza empírica mudar a própria concepção?” Freud e Pearls podem nunca
ter se entendido. E tudo bem. Pois o que faz diferença agora é a psicóloga entrelaçar
nessa teia de conhecimentos, sejam os novos argumentos científicos, algum
insigth jornalístico, revelações psiquiátricas, formulações sociológicas, questões
filosóficas, determinações jurídicas e quais forem necessários para reformular
as reflexões nesse ciclo espiral sem fim que é a evolução de quaisquer conhecimentos.
Afinal,
se você estudante ou profissional da psicologia, imerso no ciclo espiral sem
fim da construção da própria psicologia ainda tem a crença de transtorno mental
nas variantes do afeto e da sexualidade humana, busque mais. Ainda dá tempo de
não se formar ou não terminar a carreira como uma idiota - grega. Ou me explica:
se até Freud pode mudar de concepção, por que você não?
Livane Clair
Mariano
Apaixonada por
Filosofia
Aprendiz de
Psicóloga
Comentários
Postar um comentário